Vilma
A ópera
do Bom Fim
Faz
muito tempo que Vilma desapareceu, mas em minha memória ela está presente com
todos os detalhes que formavam sua exuberante figura humana.
Eu
morava numa rua pequena, estreita e tortuosa no bairro Bom Fim, que nessa época
era habitado quase que totalmente por descendentes de judeus. Lembro que, em
minha concepção ingênua de mundo, a Rua Augusto Pestana era todo o universo e a
rainha desse mundo era uma mendiga que atendia por Vilma. Vilma era de uma
exuberância majestosa, desfilando garbosamente seus trapos pela pequena rua que
abrigava tudo o que havia de mais precioso no mundo para mim. Não sei quando
ela apareceu na rua, era como se sempre estivesse estado lá, carregando seus
pertences e instalando-se para dormir na garagem do prédio da esquina.
Vilma
era pura elegância. Na cabeça tinha sempre algum chapéu velho, encontrado em
alguma lixeira ou doado por alguém da rua. Vestia-o de forma peculiar e sempre
com muito estilo. Se não estava com o chapéu colocava flores no cabelo,
arrancadas de algum canteiro próximo. Tinha encanto por usar alguns trapos à
moda xale caindo dos ombros ossudos. Nas mãos carregava um prato de louça, com
o qual pedia comida nas casas da rua. E jamais se descuidava de um boneco
vestido e agasalhado que carregava com carinho de mãe.
Certa vez, bateu à minha casa e mostrou-me o
prato vazio com desenvoltura. Até hoje me fascina o modo como, diferentemente
de todos os pedintes que já vi Vilma serenamente solicitava o pão de cada dia,
como se fosse um pai nosso encenado ao vivo em nossa comunidade. Eu era pequena
e sai atabalhoada com os pensamentos absortos nas visitas que teríamos para o
almoço. No fogão, a comida estava sendo preparada. Coloquei o que me pareceu
estar quase pronto: arroz, um pedaço de frango e farofa. Entreguei o prato a
ela, distante e sem fitá-la. Como Vilma não fez movimento algum, olhei-a. Olha
só guriazinha, ponderou ela, não vais me dizer que queres que eu coma esse
arroz assim seco, sem feijão, sem molho, sem nada. Meio boquiaberta e coçando a
cabeça, voltei à cozinha e coloquei guisadinho em cima do arroz.
Os anos foram se passando, comecei a ouvir
rock e sair com os guris da rua. Os cabelos de Vilma foram branqueando. E ela
sempre com a mesma rotina, passeando com sua trouxa, seu chapéu exótico e os
ombros cobertos por um seu xale de trapos.
Ao anoitecer estendia um tapete velho no
chão, colocava com cuidado o copo ao lado da garrafa de aguardente e da rosa
vermelha. Tirava da trouxa o bebezinho de plástico, do qual jamais se
descuidava, pegava o cobertor velho e se acomodava para dormir. Muitas foram as
tentativas de levar Vilma para algum abrigo ou albergue para indigentes, mas
ela sempre escapava e voltava a seu reino: a rua Augusto Pestana.
O ato mais fenomenal de Vilma aconteceu na
última vez que a vi. Foi como uma ópera encenada no Bom Fim. Eu estava em minha sacada. Era um domingo de
inverno ensolarado e frio. Vilma ostentava todo sua distinção e garbo. Trajava
uma saia comprida de trapos coloridos, seu xale e um chapéu de inverno um pouco
furado no meio. Em frente à minha janela, o vizinho da casa de jardim grande
estava no carro com a namorada. Vilma bateu no vidro do carro. Vi o rapaz fazer
uma cara contrafeita e resmungar sem abrir a janela. A senhora mendiga insistiu
e bateu no vidro mais algumas vezes. Tive a sensação de ter ouvido uma frase do
gênero “não tenho dinheiro” e, então, o rapaz colocou a chave na ignição. Vilma
conseguiu baixar o vidro do carro um pouco e o rapaz, sem outra opção, abriu o resto.
Ela, então, tirou da mão que estava para trás uma rosa vermelha e ofertou-a com
a nobreza que jamais perdera em todos aqueles anos de mendicidade e privações. Não resisti e, desde minha sacada, aplaudi
freneticamente, assoviei, gritei e bati os pés.
Nunca mais vi a fada mendiga, majestosa e
louca da Rua Augusto Pestana no bairro Bom Fim em Porto Alegre. Alguns dizem que
ela finalmente aceitou ficar em algum albergue, outros que morreu alcoolizada
em outra rua qualquer. A verdade é que, quando penso no desaparecimento da
Vilma, lembro-me das lendas de algumas tribos indígenas que contam que os
velhos, quando viam que era chegada sua hora, afastavam-se para bem longe da
tribo para que ninguém pudesse vê-los morrer.
De qualquer modo, esse é o fim que escolhi
para a ópera do Bom fim. Afinal a verdade é tão fugaz, subjetiva e, fundamentalmente,
tão frágil, que me sinto a vontade para inventar tal desfecho para mais uma, entre
tantas, histórias de heroísmo cotidiano.